sábado, 5 de setembro de 2009

Diálogo inter-religioso

Entre fevereiro e julho de 2006, pesquisadores da Argentina, Brasil, Nicarágua e Peru ouviram lideranças eclesiásticas e institucionais a respeito do ecumenismo na América Latina. A pesquisa, a pedido da Assembléia Geral do Conselho Latino Americano de Igrejas (Clai), foi apresentada em Buenos Aires, capital da Argentina, e traçou um perfil sobre o movimento. Um desses pesquisadores foi Darli Alves de Souza, de 39 anos. Doutorando em Ciências da Religião pela PUC e membro da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (IPIB), nesta entrevista à Enfoque ele afirma que o ecumenismo não é utopia e que é preciso sair do conceito reduzido de mesa de comunhão estritamente cristã e buscar respeito e entendimento com outras culturas e religiões. O pesquisador defende ainda que a mesa da comunhão deva dar acesso aos excluídos que estão espalhados pelo planeta.

ENFOQUE – Qual é a síntese do movimento ecumênico na América Latina?

DARLI ALVES – É a busca da unidade em meio à riqueza da diversidade do povo de Deus. Isso se consolida por meio de várias iniciativas na área dos direitos humanos, juventude, saúde, meio ambiente e reflexões bíblico-teológicas, entre várias outras.

ENFOQUE – No Brasil, qual é a realidade desse movimento?

DARLI ALVES – A realidade é a busca de unidade e não-duplicação de esforços através da construção de redes de articulação para atuar de maneira concreta dentro e fora das igrejas. É necessário compreender que o ecumenismo não se dá apenas no espaço eclesiástico. Ele se dá também em várias outras iniciativas da sociedade, como, por exemplo, em entidades que não têm vinculação direta com alguma igreja.
A dimensão ecumênica vai além da dimensão religiosa; caminha na direção da integridade da natureza e respeito ao meio ambiente. Todas essas questões são integrantes de uma concepção ampla e adequada de ecumenismo. Portanto, quando se participa de iniciativas que envolvem direitos humanos e ambientais, elas são exemplos de participação ecumênica, muito embora o movimento ecumênico seja muito mais conhecido por suas iniciativas vinculadas ao cristianismo de maneira geral.

ENFOQUE – A que conclusão foi possível chegar através dessa pesquisa? O que há de novo, se comparado aos outros países ouvidos?

DARLI ALVES – O que se pôde perceber é que não há diferenças significativas em termos latino-americanos. Há, sim, muito mais elementos em comum nesse sentido. Um desses desafios é a necessidade de encontrar novos paradigmas que possam fazer frente aos desafios que novas realidades sociais e eclesiais apresentam. Isso vai melhorar a incidência pública, ampliar os mecanismos de inclusão e reconhecer que os caminhos da unidade se constroem a partir da diversidade de expressão da experiência ecumênica – e que estas são protagonistas na construção de pontes entre a igreja e a sociedade.

ENFOQUE – O que é preciso para aprofundar o diálogo entre protestantes e católicos e eliminar tendências sectárias e hegemônicas?

DARLI ALVES – É necessário ter uma cultura de respeito para enxergar a riqueza da diversidade do povo cristão. Cada ramo do cristianismo tem o seu valor e sua contribuição a dar para que o mundo em que vivemos possa ser melhor em todos os sentidos. Somente um espírito e uma mentalidade de paz, cooperação e solidariedade poderão levar ao completo entendimento e unidade entre os povos, não só cristãos, mas de outras religiões também. Um elemento que deve ser superado é a sede de poder que por vezes permeia as reflexões e discussões. É necessário superar a mentalidade de que quantidade de fiéis seja sinal de graça, poder e sucesso.

ENFOQUE – Há alguma razão e estigma para o ecumenismo ser demonizado no Brasil, principalmente entre os pentecostais e neopentecostais? O que é verdade e o que é mentira acerca desse tema?

DARLI ALVES – O ecumenismo foi estigmatizado no período da ditadura militar no Brasil, entre os anos 60 e 70. Nesse período, certas lideranças cristãs, cooptadas pelo sistema ditatorial perverso, afirmavam que ser ecumênico era ser comunista, ser contra os interesses da nação, e em setores mais radicais, coisa do demônio. Isso caiu no senso comum do imaginário cristão, principalmente nos setores conhecidos como evangélicos e pentecostais do protestantismo brasileiro.

A meu ver, não há qualquer motivo ou razão para que se associe ecumenismo com coisa do demônio ou algo que o valha. O que se pretendia na época mencionada acima era uma sociedade mais justa e igualitária em meio a tanto cerceamento das liberdades mínimas da pessoa humana. As lideranças ecumênicas do Brasil e da América Latina, em geral, prestaram um excelente serviço não só de reflexão bíblico-teológica como de ação libertária das ações violentas e opressoras.

Esses líderes ecumênicos de vanguarda foram verdadeiros baluartes na busca de garantir uma vivência libertária do Evangelho de Jesus Cristo. Levantaram a sua voz profética contra os abusos das autoridades constituídas da época e, por isso, foram perseguidos, torturados e até mortos. Muitos deles foram delatados por líderes de dentro de suas próprias igrejas locais, e nem por isso se calaram ou deixaram de agir. O grande legado que possuímos dessa geração de profetas e profetisas ecumênicos foi o rompimento do sistema opressor para, junto com outras lideranças de outros setores da sociedade, construir um país mais democrático, mais igualitário e mais humano.

ENFOQUE – Por que alguns itens do ecumenismo não saem do papel? Há muito discurso e pouca prática?

DARLI ALVES – Quem afirma isso é porque não conhece a realidade ecumênica e suas ações. Um olhar mínimo para a realidade faz com que esta pergunta caia por terra completamente. Há muitas ações que não estão na mídia e que fazem parte da ação prática do ecumenismo. Muitas vezes o movimento ecumênico faz o trabalho da “formiguinha” e obtém grandes resultados que, por vezes, não são atribuídas às suas ações.

ENFOQUE – Quais são os prós e os contras do ecumenismo? E que conseqüências sobre as igrejas haveria se elas abrissem mais espaço para esse tipo de movimento?

DARLI ALVES – Não vejo qualquer elemento contra o ecumenismo. O que se deve ter é cuidado para não confundir ecumenismo com ajuntamento de igrejas ou religiões. Isso, sim, representa um grande perigo para o ecumenismo, mas até o presente momento, eu não visualizo nenhuma iniciativa verdadeiramente ecumênica que vá nessa direção. Para aquelas igrejas que não têm a oportunidade de participar desse movimento de maneira mais direta, estão perdendo uma grande chance de fortalecer sua própria identidade, trocar experiências com irmãos e irmãs de fé, bem como com iniciativas que não estão vinculadas diretamente ao cristianismo.

Ser ecumênico é, para mim, um pressuposto básico para ser cristão. Além do mais, é através da riqueza da experiência das diferentes igrejas espalhadas pelo Império Romano, no período apostólico, que podemos nos inspirar para agir ecumenicamente e participar do movimento sem medo de estarmos sendo contraditórios com a Bíblia.

ENFOQUE – O ecumenismo é possível ou uma utopia?

DARLI ALVES – O ecumenismo não só é possível, como ele existe na prática do cotidiano. O que ocorre é que, muitas vezes, várias iniciativas, encontros, congressos, eventos, projetos sociais, manifestações de incidência pública, são ecumênicos, mas por vários motivos as pessoas de igrejas cristãs não assumem o caráter ecumênico da ação. Essa é uma discussão longa e interessante porque, para certos setores do cristianismo, a palavra ecumênico ou ecumenismo são proibidas. Daí muitas iniciativas ecumênicas serem chamadas de interdenominacionais, intereclesiásticas, paraeclesiásticas ou não-denominacionais.

Por outro lado, há de se mencionar que há uma caminhada a percorrer para se atingir a plenitude do ecumenismo quanto à superação de certos entraves, entre eles, os existentes no âmbito cristão: as questões sobre batismo, eucaristia e ministérios. Nessa direção, o Conselho Mundial de Igrejas (CMI) publicou um interessante estudo (livro publicado pelo CONIC) com o mesmo nome – Batismo, Eucaristia e Ministérios (BEM). Esse estudo mostra os entraves, principalmente dentro do cristianismo, para a construção de uma unidade mais ampla.

Quanto ao diálogo inter-religioso que promova uma relação de direitos iguais entre as diferentes manifestações religiosas, também há muito que se caminhar. É necessário que muitos setores do cristianismo deixem de demonizar outras manifestações religiosas para a construção de uma cultura de respeito e paz entre as pessoas. Assim como os cristãos, as outras religiões devem possuir direitos e deveres como cidadãos que convivem em um mesmo mundo. Nós, cristãos, não devemos nem podemos achar que, porque somos cristãos, somos mais humanos do que outras pessoas que professam outra fé religiosa. Que somos mais dignos e que temos mais direitos que outras pessoas. Se essa mentalidade não se reverter, as conseqüências podem ser ainda mais graves do que já se presencia na atualidade.

Celso de Carvalho
REVISTA ENFOQUE GOSPEL - EDIÇÃO 77

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